Ensino Superior

Lei de cotas completa 10 anos: o que mudou na última década?

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Entre avanços e polêmicas, a Lei de Cotas completa dez anos em 2022 e pode ser revisada pelo Congresso Nacional. Mas o que mudou nessa década? As cotas cumpriram sua função? O que precisa ser melhorado? Afinal, como funciona a lei e principalmente, por que precisamos de cotas?

Para responder a essas e outras questões, convidamos a reitora da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e ex-vice-presidenta da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), a geóloga Joana Angélica Guimarães da Luz e o historiador e vereador de Porto Alegre, Matheus Gomes.

 

Como funciona a lei

A Lei de Cotas entrou em vigor em 29 de agosto de 2012. A legislação prevê que 50% das vagas em universidades e institutos federais sejam direcionadas para pessoas que estudaram o ensino médio integralmente em escolas públicas.

Desse total, 50% devem ser reservados aos estudantes vindos de famílias com renda igual ou inferior a um salário mínimo e meio por pessoa.

Já distribuição das cotas raciais e de deficiência é feita de acordo com a proporção de indígenas, negros, pardos e pessoas com deficiência no estado onde está situada a instituição, seguindo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Vale lembrar que a Lei de Cotas é aplicada por um cruzamento de fatores. Ter estudado em escola pública – ou seja, o recorte social – é o primeiro grande marcador. Sem ele, a pessoa não pode se valer da legislação. A partir disso, somam-se os outros fatores.

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Avanços

Para Guimarães da Luz, a primeira mulher negra a se tornar reitora em uma universidade federal no Brasil, é perceptível a mudança de perfil socioeconômico de quem frequenta os corredores das instituições de ensino superior nos últimos anos.

“Hoje, pessoas pobres conseguem chegar à universidade. Você vê uma presença maior de pessoas negras e pessoas trans que antes estavam apartadas da educação superior” afirma.

Os números corroboram a percepção da reitora. Em 2012, as matrículas de pessoas pretas e pardas em universidades federais somavam 227.725 alunos de um total de 1.087.413.

Já em 2020, de acordo com o último Censo do Ensino Superior, esse número saltou para 587.801 de um universo de 1.254.080.  Quando se trata de indígenas, o número que era de 2.370 em 2012 chega a 9.685 em 2020.

Assumindo o protagonismo

Outro aspecto perceptível é o impacto que essas pessoas geram nas universidades do ponto de vista de mudança de paradigmas e transformações dos processos de ensino e aprendizagem.

Com mais diversidade, o próprio pensamento científico é impactado. Afinal, temas que não eram abordados – por não figurarem na realidade das classes média e alta – entram em pauta na academia. E isso traz um impacto social importante.

“Eles deixam de serem os outros, os observados pelos estudos, para se tornarem agentes construtores da própria história, narrando as suas realidades”, comenta Guimarães da Luz.

Para Matheus Gomes, um homem negro eleito vereador com a quinta maior votação da capital gaúcha e que atualmente cursa o mestrado em História, o acesso de mais pessoas negras ao ensino superior é um catalisador de transformações sociais no Brasil.

“Ainda temos muito a avançar para consolidar essas mudanças, mas agora nossas vozes e reivindicações também chegarão na academia, nos escritórios de advocacia, entre os médicos, engenheiros e por aí vai. É preciso valorizar o papel das ações afirmativas”, ele destaca.

Preconceitos e resistências

Gomes fez parte da segunda turma de cotistas negros do curso de Ciência Sociais, do qual foi aluno por um ano, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Depois, em 2010, foi para o curso de História, na terceira turma de cotistas da instituição, ainda antes da legislação atual.

Para ele, a experiência foi dura, especialmente no começo. “Nós não éramos aceitos no ambiente universitário e rompemos uma barreira que para muitos parecia impossível”, explica.

“Um dos casos que conto sempre foi quando um segurança me retirou da fila do restaurante universitário por pensar que eu não era aluno e estava ali só para roubar”, relembra. Apesar do acontecimento, com o tempo e a entrada cada vez maior de estudantes negros, o ambiente foi se tornando menos hostil.

Infelizmente, os preconceitos não são exclusividade de Matheus ou de quem ingressou na universidade na última década. Para Guimarães da Luz, hoje com 64 anos e única negra da sua turma na época da graduação, a atmosfera universitária também não era acolhedora.

“Ainda na década de 1980, eu achava que eu não servia para aquele ambiente. Quem é das periferias precisa olhar para esse espaço e se enxergar nele. Ao fazer isso, as pessoas percebem a educação como sendo um direito e não um favor”, afirma.

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Falando em permanência

Para a reitora da UFSB, a Lei de Cotas amplia os horizontes de muitos jovens que não tinham perspectiva alguma de ingressar no ensino superior. Ainda assim, a população pobre dentro das universidades continua pequena devido às dificuldades de permanência.

Por isso, é preciso pensar na manutenção desses estudantes no ambiente acadêmico. O que passa por questões financeiras e a ampliação do Plano Nacional de Assistência Estudantil. Mas vai além: “É preciso acolher integralmente todas as pessoas”, destaca Guimarães da Luz.

Já para Gomes, é fundamental que haja uma rede de apoio ao estudante cotista. Não só institucionalmente por parte da universidade, mas também do movimento estudantil e social, com uma luta constante pela permanência.

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Revisão da Lei

Em sua redação, a lei prevê uma avaliação após dez anos de vigência. Porém, a legislação não estabeleceu como esse processo deveria ocorrer e quais critérios obedeceria – nem estipulou um prazo para sua extinção. Assim, mesmo sem a revisão, a política de cotas continuará valendo e só pode ser alterada ou revogada por lei.

Segundo Guimarães da Luz, é importante olhar esses últimos dez anos e fazer melhorias.  Porém, é necessário levar em consideração o momento instável da política brasileira.  Ela lembra que as cotas são a única política pública voltada à população negra e que a questão racial é muito importante no Brasil.

“A maioria das pessoas nas periferias é negra. E isso reflete o nosso processo histórico envolvendo a escravidão e a negligência do Estado para com essas pessoas. Por isso, manter o recorte racial ainda é válido”, ela ressalta, respondendo sobre o que deveria ser mantido e ampliado na legislação.

Para a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, de modo geral, há um sentimento de que a política precisa ser defendida incondicionalmente. Ou seja, ela precisa de revisões para ser ampliada, jamais extinta ou diminuída.

Gomes alerta que a revisão da lei é um tema complexo. “Já temos mais de vinte projetos na Câmara dos Deputados que visam acabar com as cotas raciais ou modificá-las para impedir o acesso dos negros e negras”, destaca. “Será preciso uma grande mobilização do movimento negro e dos movimentos sociais em defesa das cotas.”

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Afinal, por que cotas?

Para responder essa pergunta, é preciso retomar a história nacional. Alicerce da sociedade no Brasil colonial, os escravizados chegaram a constituir, em regiões como o Recôncavo, na Bahia, mais de 75% da população.

Para a economia da cana de açúcar funcionar, era preciso muitos trabalhadores em uma rotina desumana de produção.

Durante os mais de 300 anos em que a escravidão reinou por aqui, os navios negreiros nunca ficaram ociosos. O Brasil recebeu praticamente a metade de todos os escravizados desembarcados nas Américas entre 1500 e 1850 – ano da proibição do tráfico negreiro. A escravidão, além de violenta, era banalizada.

Desde 1888 a escravidão não é mais legal no Brasil. Porém, o peso simbólico e social de centenas de anos não é simplesmente apagado com a legislação. Pelo contrário, uma série de acontecimentos históricos e políticos reforçaram a desigualdade social causada pela exploração de mão de obra de pessoas negras e indígenas.

Mesmo após o período oficial da escravidão, não houve, até o surgimento das cotas, nenhuma política de reparação que levasse em consideração questões étnico-raciais.

Por isso, a Lei de Cotas é importante. Ainda que de forma tardia e tímida, ela ajuda a reparar as distorções sociais causadas por centenas de anos de exploração e marginalização forçados.

Segundo o Gomes, a política de cotas é fruto de uma luta de décadas do movimento negro. “No Brasil, onde a maioria da população se reconhece como negra, era preciso que tivéssemos ferramentas para romper com o mito da democracia racial, o mito de que ‘somos todos iguais’ e de que temos as mesmas oportunidades”, afirma.

“As cotas serviram para consolidar o espaço, a história e a valorização dos negros e negras na formação do nosso país. São um instrumento importante no combate à desigualdade social”, finaliza.

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