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Educação do século 21 requer menos ensino e mais aprendizagem

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Alunos da rede pública de escola pública circulando na USP. Crédito: Cecília Bastos/USP Imagens.

Por Rui Fava

A educação para o século 21 é um negócio dedicado à aprendizagem e não ao ensino. Assim, a performance dos educadores deve ser guiada pelo entendimento mais atual do processo de aprendizagem. Nas últimas décadas, as pesquisas em psicologia cognitiva e neurociência expandiram significativamente a compreensão de como as pessoas aprendem. Mas a prática educacional brasileira acanhadamente acompanhou esse contemporâneo know-how.

É fato que os educadores enfrentam mais um desafio intimidante: prover os alunos com as competências e habilidades do século 21. Muitos perscrutadores se opõem à ideia de que o pensamento crítico, a resolução de problemas, criatividade e desenvolvimento de projetos irão corroer o ensino conteudista de importantes fundamentos – incluindo história, filosofia e literatura. A preocupação é válida até o instante em que tais habilidades não podem ser desenvolvidas nem aplicadas de forma eficaz – sem os conhecimentos prévios de uma ampla gama de assuntos.

Nenhuma geração pode escapar da responsabilidade de aprender o que o mercado e a sociedade requerem. No século 19, à medida em que a agricultura crescia em complexidade, as escolas nas áreas rurais ensinavam justamente princípios, competências e habilidades da agricultura vocacional. Com o desenvolvimento da tecnologia, da internet e dos computadores, as escolas aprimoraram seus programas de ciências, matemática e sistemas de informações. Hodiernamente, com o advento da inteligência artificial e da digitalização, estamos mais uma vez com a inevitabilidade de alterar o que e, principalmente, o como ensinar.

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A óbvia imprescindibilidade de a educação se relacionar com as demandas da sociedade foi satirizada por Harold Raymond Wayne Benjamin, em seu livro Saber-tooth curriculum (New York: McGran-Hill, 1939). Na obra, uma autoridade fictícia em educação na Idade da Pedra, apresenta os três fundamentos que deviam ser ensinados aos jovens no currículo paleolítico: 1) pegar peixes com as mãos; 2) fazer baqueteamento de cavalos; 3) assustar com fogo o similodon, mais conhecido como tigre-dentes-de-sabre. Quando os peixes se tornaram ágeis demais para pegá-los com as mãos e os cavalos e similodons minguaram, as escolas continuaram ensinando os fundamentos antigos por seu valor cultural. A revolta dos educadores progressistas contra o currículo tradicional é descrita em uma das passagens mais divertida dessa jocosa sátira.

O objetivo do livro não é menosprezar o empenho para combinar o currículo com as necessidades da sociedade; em vez disso, usa o humor para advertir como é difícil manter esse esforço. Quando os educadores paleolíticos tardiamente decidiram conceber um curso de cicatrização dos tigres-dente-de-sabre, eles só conseguiram localizar dois similodons velhos e inofensivos, tão minados pelas sevandijas, que amedrontaram os estudantes.

Portanto, tentar prever as necessidades futuras dos aprendizes, amoldar os currículos e adequar as metodologias não se trata de modismo. É uma indispensabilidade.

Ensinar e reensinar

Evidentemente, isso é apenas o prelúdio. As fases mais difíceis são: determinar as novas demandas; como essas se encaixam na prática ao currículo existente; descobrir metodologias pelas quais as competências e habilidades do século 21 possam ser desenvolvidas junto com os conteúdos; convencer os resistentes; gerir o intricado processo de implementação.

Na educação tradicional ensinamos e reensinamos as mesmas coisas cem vezes. Na 101ª vez, perguntamos aos alunos se eles se lembram do que dissemos nas cem primeiras vezes. A resposta provavelmente seja: “Não”.

Na educação para o século 21, os estudantes deverão avistar o conteúdo que nunca viram antes e saber o que fazer com ele. Recordar fatos ou termos de um livro-texto; executar procedimentos desatualizados, por meio de receitas prontas, conduz a um baixo nível de demanda cognitiva aos estudantes. Soterrar os alunos com dados, informações, situações, cenários, para fazer conexões entre ideias relacionadas; inferir como encaram, se adaptam, resolvem problemas complexos com base numa série de conteúdos desconexos; pensar nos vínculos, nos aspectos frágeis da lógica de um argumento, nas referências que podem estar faltando, mesmo afogados em dados de toda espécie, requer pensamento amplificado e demanda cognitiva ampliada.

Os educadores mais relutantes afirmam que as competências e habilidades do século 21 não são exclusivas deste século. Isso é real, mas existem três motivos para estarem em evidência:

  1. As competências e habilidades são incorporadas ao denominado currículo oculto e relegadas para o domínio “bom ter” e não para o “deve ter”, o que significa que não são desenvolvidas e avaliadas metodologicamente.
  2. As competências e habilidades são essenciais para todos. Na Revolução Industrial existia um mundo hierárquico com uma mentalidade de linha de montagem. Apenas a administração superior assumia a responsabilidade de resolução de problemas, tomada de decisões e comunicação de suas organizações. Eles emitiam as ordens e esperava-se que a maioria simplesmente seguisse as instruções sem qualquer questionamento. As organizações competitivas hodiernas reduziram as estruturas de gestão, ampliaram o uso de tecnologia, criaram arranjos de trabalho mais flexíveis e deram maior responsabilidade aos funcionários da linha de frente. Com essas mutações, os estudantes que não dominam as habilidades do século XXI dificilmente atingirão seus potenciais de empregabilidade e trabalhabilidade.
  3. As competências e habilidades que o mercado e a sociedade dizem ser necessárias para o sucesso convergiram. A estrutura para a aprendizagem do século 21 articula diversas habilidades que definitivamente inovam: adaptabilidade, adotabilidade, criatividade, liderança, habilidades interculturais, colaboração, bem como mente sintetizadora, mente disciplinada, mente resiliente, mente respeitosa e mente ética.

Essas habilidades diferenciam o profissional, sustentam todos os aspectos de competitividade, engenhosidade, agilidade e melhoria contínua; capacidade de transformar ideias ousadas em produtos, serviços e soluções inovadoras; defender esforços que valem a pena; superar obstáculos. Isso significa que apenas o domínio do conteúdo não é mais suficiente. Afinal, isso é efêmero. Os estudantes precisam saber aplicar o conteúdo e transformar seus conhecimentos para fins úteis e criativos e continuar aprendendo à medida que as circunstâncias modificam.

Não o quê. Mas como

As escolas deverão ensinar como pensar e não apenas o que pensar. Decorar fórmulas e conceitos não faz mais sentido – estão disponíveis na internet. Isso não significa que não precisaremos adquirir e desenvolver competências técnicas. Contudo, o profissional deve estar apto a aprender, desaprender e aprender novamente as competências que irão substituir as que se tornam celeremente obsoletas.

Os humanos estão cada vez melhores em compreender o cérebro e a inteligência cognitiva, mas estão evoluindo cada vez menos em termos de inteligência emocional (consciência, sentimento, empatia). O homem está criando inteligência artificial, mas não está concebendo consciência, sentimento, empatia e discernimento artificial. O profissional de sucesso no futuro será o indivíduo versátil com profundidade nas inteligências cognitiva e volitiva e, com muita amplitude, nas inteligências emocional e decernere, conforme demonstrado na figura abaixo. Portanto, sem as mutações necessárias para ajustar todas as escolas aos padrões do século 21, continuaremos a coletar os ultrapassados resultados do século 20.

A economia global, com suas ocupações emergentes, oferece enormes oportunidades para todos que possuem as competências e habilidades contemporâneas. O trabalho manual, as tarefas preditivas e rotineiras deram lugar as incumbências interativas e não-rotineiras. Companhias inovadoras e ocupações de alto crescimento recompensam pessoas capazes de se adaptar e contribuir para organizações, produtos, serviços e processos. O mercado requer colaboradores com habilidade de comunicação, resolução de problemas, pensamento crítico, trabalho em equipe, e que saibam conviver com a diversidade.

Em épocas anteriores, quando o convívio dos seres humanos era limitado a centenas de pessoas ao longo da vida, a natureza das atitudes interpessoais e grupais, a empatia, o domínio das emoções, os sentimentos, a cooperação. Enfim, a inteligência emocional era de menor importância. Com o desenvolvimento dos meios de transportes e mídias sociais, vivenciamos uma fase em que um indivíduo pode se relacionar não com centenas, mas com milhares e até milhões de pessoas.

Assim a importância da confiança, da cooperação, do respeito, da ética, da resiliência cresce exponencialmente. O trabalho de economias baseadas no conhecimento cada vez mais é realizado por equipes com experiência e funções complementares. Devido a sua essencialidade, a inteligência emocional imperiosamente deverá ser desenvolvida nos níveis iniciais da educação. É por meio dela que se incrementará, nas crianças e adolescentes, as inteligências cognitiva, volitiva e descernere, razão pela qual a inteligência emocional deverá ser o esteio para a concepção dos currículos do Ensino Fundamental e Médio, conforme abaixo.

Em contraste, a capacidade de filtrar rapidamente grandes quantidades de dados recebidos e extrair informações valiosas para escolha e tomada de decisões se tornou essencial. Pela primeira vez na história, as pessoas estão inundadas por enorme quantidade de dados que precisam acessar, gerenciar, integrar, avaliar e utilizar.

Em vez de vasculhar as pilhas de livros, artigos, jornais e revistas de bibliotecas para encontrar algum conhecimento, atividade característica do acesso à informação no século 20, os usuários dos modernos mecanismos de busca recebem milhares e até milhões de hits instantaneamente. No entanto, muitos desses recursos estão fora do alvo, incompletos, inconsistentes e talvez tendenciosos. A capacidade de separar o sinal do ruído em uma inundação potencialmente avassaladora de dados recebidos proporcionou um grau elevado de importância da inteligência decernere.

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Na educação do século 20, as habilidades de resolução de problemas e desenvolvimento de projetos são apresentadas de forma abstrata, removida da aplicação do conteúdo estudado, o que dificulta a transferência para situações do mundo real. O objetivo final desse tipo de educação é a memorização de uma rotina específica de solução de problemas para corresponder a todas as situações, em vez de desenvolver estratégias especializadas e metacognitivas que indicam como proceder, quando nenhuma abordagem padrão parece aplicável, desenvolvendo no estudante a proatividade, dinamismo, iniciativa, enfim, a inteligência volitiva.

A inteligência volitiva permite implementar inovações, estratégias, transmutações e metamorfoses que culminam na descaracterização da concorrência. Ela faz surgir hodiernas ocupações, tenros produtos, novos serviços e vigorosos mercados. Propicia a eficiência, estando relacionada com a maneira como a atividade é realizada. Faculta a eficácia, o discernimento, a escolha, a tomada de decisão, o êxito dos resultados obtidos. Propicia a efetividade, ou seja, a capacidade de ser eficiente e eficaz ao mesmo tempo. Dessa forma, a inteligência volitiva deverá ser o pilar para a formação do profissional integral, sendo a base para a concepção dos currículos da educação superior e que forçará o desenvolvimento das inteligências cognitiva, emocional e decernere.

Desenvolver as competências e habilidades do século 21 é um grande desafio. Mete medo e proporciona resistência da maioria das escolas de nível básico e superior. Nesse imenso mundo de possibilidades, muitas escolas estão digitalizando sua estrutura com hardwares e softwares de última geração. Mas não fazem o mesmo com seus currículos, metodologias e avaliação. É mister lembrar que a capacidade de utilizar dispositivos digitais e mídias sociais não significa que os estudantes saibam algo sobre aplicação de conteúdos, desenvolvimento de projetos, resolução de problemas, criatividade, síntese, raciocínio indutivo e dedutivo.

Diante da inexistência de cultura, falta de vontade e perceptível resistência de grande parte dos educadores na adequação dos currículos e na utilização de tecnologias e metodologias ativas e experimentais, somente será possível ultrapassar essas barreiras por meio da concepção e desenvolvimento de um sistema de ensino para a educação superior. É muito mais que apostilamento. Trata-se da oferta de um conjunto de competências e produtos a serem desenvolvidos por meio de um roteiro subsidiado pela gestão de ferramentas tecnológicas, bem como um vasto repertório de objetos de aprendizagem que não ferem a liberdade de cátedra do professor, mas amplia seus recursos para aplicação dos conteúdos, avultando a relação ensino-aprendizagem.

Por todos os argumentos acima proferidos, se torna perceptível que a educação para o século 21 requer menos transmissão e mais experimentação. Pleiteia menos ensino e mais aprendizagem.

Leia mais: Atual sistema de ensino é entrave para educação digital


Sobre o autor

Rui Fava é sócio-fundador da Atmã Educar, ex-reitor da Unic, da Unopar e vice-presidente acadêmico da Kroton. É autor de diversos livros, como Trabalho, Educação e Inteligência Artificial: A Era do Indivíduo Versátil, Educação 3.0: Como Aplicar o PDCA nas Instituições de Ensino e Educação para o século 21: a era do indivíduo digital.

Redação
A redação do portal Desafios da Educação é formada por jornalistas, educadores e especialistas em ensino básico e superior.

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