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Os desafios do ensino híbrido nos países em desenvolvimento

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O ensino híbrido, mundialmente conhecido como blended learning, pode ser a chave para a renovação da aprendizagem – desde a educação básica até o nível superior. Isso é o que aponta o relatório Blended Beyond Borders: A scan of blended learning, obstacles and opportunities in Brazil, Malaysia and South Africa, organizado pelo Clayton Christensen Institute (CCI), uma organização norte-americana dedicada à avaliação e ao desenvolvimento de projetos para aprendizagem online.

O levantamento, publicado no final de 2017, investigou a influência do ensino híbrido em 250 instituições públicas e privadas do Brasil, da Malásia e da África do Sul. A pesquisa descobriu que o sistema ainda enfrenta obstáculos de implantação, mas já começou a surtir efeitos. O principal deles: trazer uma cultura de inovação e crescimento tecnológico para países em desenvolvimento.

Nos últimos 20 anos, o uso da tecnologia em escolas e universidades ganhou espaço mundo afora. A aplicação de programas baseados em trilhas de aprendizagem e ensino híbrido tem favorecido a assimilação do conteúdo a partir de processos personalizados. Entretanto, o modelo ainda não foi plenamente compreendido pelas instituições.

“Muitas escolas não perceberam que o ensino híbrido individualiza a experiência do aluno. Os gestores encaram o recurso como uma ferramenta de tecnologia, e não como algo diretamente ligado à grade curricular e à forma de aprender”, avalia Katrina Bushko, pesquisadora do CCI e especialista em inovação, programas de formação de professores e ensino híbrido, em entrevista ao Desafios da Educação.

De acordo com o relatório, o ensino híbrido se desenvolve de diferentes maneiras em cada país pesquisado. Isso se deve a particularidades legislativas e à própria tecnologia disponível. Neste ponto, o fato de a metodologia não possuir um modelo padrão favorece a educação, permitindo que cada região descubra a sua maneira de inovar com os recursos possíveis.

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Aposta em inovação

Desde os anos 1990, o Brasil dedica uma média de 4,4% do PIB à educação – uma taxa relativamente alta quando comparada com os países investigados no relatório da CCI. O desempenho dos alunos brasileiros, no entanto, deixa a desejar. O país apresenta índices inferiores à média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em disciplinas como Ciência, Leitura e Matemática.

Ciências
Média Geral: 493 pontos
Brasil: 401 pontos

Leitura
Média Geral: 407 pontos
Brasil: 493 pontos

Matemática
Média Geral: 377 pontos
Brasil: 490 pontos
Fonte: OCDE

Uma das soluções para melhorar esses números e aumentar o engajamento nas salas de aulas é apostar em tecnologia adaptadas à realidade dos alunos. “As escolas que visitamos usavam, invariavelmente, as mesmas cinco ou seis ferramentas de tecnologia – e a maioria eram produtos estrangeiros, sem versão para o português”, destaca Katrina. A pesquisadora ressalta que os aplicativos em inglês não são suficientes para as escolas brasileiras. Ou seja, o segmento oferece inúmeras oportunidades para a criação de conteúdo local.

Não à toa, o mercado de EdTech, dedicado à elaboração de ferramentas inovadoras para o setor de educação, é um dos que mais deve crescer nos próximos anos. Os negócios do setor movimentarão cerca de US$ 252 milhões em 2020, de acordo com uma projeção da consultoria Ibis Capital. Em 2012, foram US$ 90,9 bilhões. Isso representa um acréscimo superior a 500% em apenas oito anos.

A pesquisa aponta ainda que os sistemas de educação centralizados têm mais chance de dar errado do que os modelos sem estrutura rígida. “Na Malásia, o padrão educacional é extremamente centralizador e não permite que cada escola crie por conta própria”, explica Katrina. Nesse ponto, o Brasil tem um modelo mais maleável, semelhante ao dos Estados Unidos. “Aqui [nos EUA], uma escola não precisa ser idêntica à outra. Há mais liberdade para inovar.”

África do Sul, Brasil e Malásia: pontos a progredir

O relatório do CCI ressalta alguns gaps existentes nos países pesquisados. O envolvimento dos estudantes na aprendizagem mista é um deles. Como alternativa, os autores do documento sugerem a criação de redes colegiadas de professores, a fim de formar um sistema de troca de experiências e apoio.

Outro ponto diz respeito aos próprios docentes. “Os professores querem ensinar de uma nova forma, mas nunca foram expostos ao modelo. Cria-se, assim, uma resistência à aderência logo no início do processo educacional”, afirma Katrina. Sob esse viés, a solução passa pelo apoio das universidades, que devem inserir conteúdos sobre ensino híbrido no currículo de formação dos futuros docentes.

A falta de infraestrutura tecnológica (tablets e computadores, por exemplo) e a ausência de capital humano qualificado também foram listadas como entraves para o desenvolvimento do blended learning.

A seguir, confira o detalhamento dos obstáculos descritos no relatório da CCI:

1. Utilização de tecnologia não significa conteúdo de qualidade

Diagnóstico: nos países analisados, apesar do alto índice de uso da tecnologia, o conteúdo oferecido nem sempre resulta em aprendizado efetivo. A qualidade dos materiais é o principal déficit do mercado. Há, ainda, uma profunda falta de entendimento quanto aos modelos de ensino híbrido. Os profissionais também devem compreender que a utilização de recursos tecnológicos não constitui, por si só, uma experiência de aprendizagem combinada.

Solução: para reverter o quadro, gestores e professores devem obter qualificação em recursos que utilizam o ensino híbrido. Além disso, o relatório sugere que as empresas do setor realizem treinamentos para impulsionar as experiências com tecnologias educacionais, popularizando a distinção entre os modelos – especialmente aqueles ligados à aprendizagem mista.

2. O ensino online e o blended learning se desenvolvem de maneira diferente em diferentes circunstâncias

Diagnóstico: os modelos centralizados oferecem desvantagem ao desempenho das escolas que utilizam blended learning. Na África do Sul e na Malásia, países com grau de centralização da educação superior ao brasileiro, os currículos fechados podem reduzir os resultados significativamente, dependendo da região e da abordagem adotada.

Solução: como não existe uma receita única, cada região precisa encontrar um modelo de blended learning que se adapte à sua realidade. Um parâmetro interessante é empregar novas métricas para avaliar a integração entre sala de aula convencional e tecnologia. Os índices que levam em consideração apenas os números precisam ser combinados com modelos qualitativos, capazes de demonstrar o efeito produzido pela integração tecnológica em cada localidade.

3. Déficit de infraestrutura e capital humano

Diagnóstico: o déficit desses dois itens representa o maior entrave para a implementação do modelo nos três países.

Solução: buscar treinamento e profissionalização dos professores, a partir de mudanças nas estruturas pedagógicas e curriculares dos cursos. Os gestores também precisam entender que apenas o acesso à internet não constitui uma experiência ativa de ensino. Sem agregação de fatores logísticos e humanos, a interação online é praticamente nula para fins de educação.

Confira a seguir cinco perguntas para Katrina Bushko, pesquisadora do Clayton Christensen Institute e especialista em inovação, programas de formação de professores e ensino híbrido:

Por que o interesse em avaliar o ensino nesses três países?

Já sabíamos que existiam iniciativas com ensino híbrido na Malásia, no Brasil e na África do Sul. A facilidade de estabelecer parcerias com instituições locais, como a Fundação Lemann, por exemplo, nos deu segurança para saber que conseguiríamos traçar um perfil de três diferentes continentes a partir de amostrar bem diversificadas, visitando escolas públicas e privadas. No Brasil, visitamos 12 escolas e conversamos por chamadas de vídeo com outras três que acreditavam utilizar ensino híbrido. Ao final do processo, descobrimos que apenas oito instituições estavam utilizando, de fato, o hibridismo. Entre elas a Escola Projeto Vida (SP); a Escola Municipal Emílio Carlos (RJ); o Colégio Vinícius de Moraes (MA); e o Colégio Pastor Dohms (RS).

Quais são os principais pontos que chamaram sua atenção nos três países?

Observamos que a Malásia utiliza muito os laboratórios rotacionais [em que os alunos fazem rodízio entre sala de aula e laboratório de informática], mas isso não é por acaso. No início dos anos 2000, o governo forneceu computadores para as escolas públicas, então se criou uma forte cultura de tecnologia, com alunos utilizando a internet desde muito pequenos; e todos os professores já com muita familiaridade ao meio. Por isso, eles estão tendo certa facilidade para implementar o ensino híbrido. Na África do Sul, as escolas têm mais diversidade em relação aos modelos de ensino híbrido, utilizando diversos modelos. Além dos laboratórios de rotação, utilizam também rotação por estação [quando os alunos fazem rodízio em grupos dentro da sala]. Já no Brasil vimos mais rotação de estação e sala de aula invertida. Nesse ponto, o ensino híbrido brasileiro tem mais possibilidades, mas com certeza essas possibilidades não estão disponíveis para todas as escolas. Há uma distinção que afeta o desempenho das instituições, mas não focamos em entender as causas, pois nosso objetivo era apenas mapear o ensino híbrido naquele momento.

Qual o modelo de educação do futuro? Como é a educação disruptiva ideal?

O ensino híbrido não possui um modelo ideal – o que favorece a personalização de cada escola. Isso sempre será diferente pra cada instituição, porque cada local tem seus próprios desafios e oportunidades que precisam ser resolvidos. Com o ensino híbrido, a gente acha que você precisa começar com um desafio inicial, que é o de quebrar paradigmas. A partir daí, cria-se um ponto de referência sobre o qual é possível desenhar um programa de educação. E, com o ensino híbrido, isso pode acontecer de várias maneiras, graças às diversas opções de modelos. Se na mesma sala de aula o professor tem um aluno que prefere ver vídeos para aprender e outro que gosta muito mais dos livros, os dois igualmente vão aprender – mas não é necessário que seja da mesma maneira. A disrupção ideal será aquela que utilizará a tecnologia como base para um ensino ativo e personalizado, com o aluno no centro do processo educativo. Essa é a inovação que queremos.

Em quanto tempo chegaremos nesse cenário?

Não quero comparar o Brasil com os Estados Unidos, até porque nós começamos o movimento de ensino híbrido há mais de dez anos e ainda não estamos prontos. Estamos desenvolvendo nossas escolas, novos projetos e não chegamos num ponto ideal. Nosso ensino ainda não é perfeito e precisamos desenvolver muitos aspectos. Mas o que favorece nosso ensino é a nossa capacidade para fazer. O Brasil não está no mesmo compasso, mas tem liberdade para inovar e muitas escolas já tem um número suficiente de computadores, além de uma boa capacidade de conexão. Entretanto, isso não é ensino híbrido. Não é possível estimar uma data, porque ela dependerá basicamente de quanto tempo se levará para produzir conteúdo, tecnologia e formação de qualidade. Esse é o maior desafio para colocar de vez o ensino híbrido no Brasil.

 De que maneira as instituições de ensino superior podem contribuir para acelerar o processo?

A formação voltada às metodologias ativas é essencial para as faculdades e universidades, se quisermos um país que saiba utilizar ensino hibrido. Mas a realidade é outra: nas escolas e universidades que dizem usar ensino híbrido, vemos professores que nunca tiveram exposição ao método e estão ensinando. Se os professores puderem realmente descobrir o que é o ensino híbrido isso vai ajudar muito. É o pontapé inicial.

Redação
A redação do portal Desafios da Educação é formada por jornalistas, educadores e especialistas em ensino básico e superior.

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