Metodologias de Ensino

Com projetos integradores, centros universitários organizam novas formas de ensinar

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Em vez de entregar uma carga elevada de conteúdos e atividades por disciplina, gestores criaram projetos integradores. Crédito: Unsplash.

Após um semestre (praticamente inteiro) de ensino remoto emergencial, o segundo semestre começou com perspectivas nada animadoras para o ensino superior privado. Olhando pelo prisma da gestão, a crise gerada pela pandemia aumentou os índices de inadimplência, evasão e pressão por descontos. Segundo o Semesp, a desistência deve aumentar de 30% para 40% até o fim de 2020. Já a captação de calouros pode cair 70%.

E ainda há os problemas de aprendizagem, já que muitos professores ainda insistem em virtualizar o ensino presencial. Será que estudantes e docentes da modalidade vão resistir a mais um semestre repetindo as mesmas dificuldades em relação à sobrecarga de trabalho e de atividades, além da sensação de um semestre perdido?

Com o aval do MEC para manter as atividades de forma remota também neste segundo semestre, através da portaria 544/2020, as IES podem se reorganizar de forma inovadora. Em vez de entregar uma carga elevada de conteúdos e atividades por disciplina, gestores, coordenadores e professores criaram projetos integradores – ou interdisciplinares.

Os projetos absorvem os componentes curriculares e aglutinam o que é importante e relevante para a aprendizagem do aluno, motivando-o a criar um protótipo ou algo concreto. Dessa forma, sob orientação do professor, os colegas interagem ao longo das aulas e encerram o semestre com algo que possam se orgulhar.

ensino híbrido

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A ideia dos projetos integradores

Diretor do Grupo A Educação e especialista em metodologias ativas, Gustavo Hoffmann diz que hoje existe um abismo entre as competências definidas pela academia (e desenvolvidas pelos alunos ao longo de suas formações) e as reais demandas do mercado.

“A inclusão de projetos integradores no currículo de forma inteligente e a utilização de metodologias ativas de aprendizagem são elementos comprovadamente eficazes para reduzirmos esse abismo que só aumenta a ineficiência do nosso modelo educacional tradicional”, afirma.

Esses projetos integradores já estão no DNA de algumas instituições de ensino superior, incluindo Uniamérica, Unipam, Unifeob e Unifaa. Para entender como eles são praticados, conversei com:

  • Adriene Sttéfane Silva, coordenadora pedagógica de educação a distância no Centro Universitário de Patos de Minas (Unipam), de Minas Gerais;
  • Raíza Brustolin, Coordenadora do Núcleo Integrado de Tecnologias e Gestão Educacional (Nite) no Centro Universitário Uniamérica, de Foz do Iguaçu (PR);
  • Inês Waitz, coordenadora pedagógica do Centro Universitário Octávio Bastos (Unifeob), de São João da Boa Vista (SP);
  • Marcio Martins, pró-reitor de educação a distância do Centro Universitário de Valença (Unifaa), do Rio de Janeiro.

Confira, a seguir, a entrevista com esses educadores.

Adriene Sttéfane Silva

Quais são os maiores desafios na oferta dos projetos integradores/interdisciplinares?

Adriene Sttéfane Silva: Os maiores desafios enfrentados pelo nosso time inclui o ambiente virtual de aprendizagem (AVA), que ainda não se mostra efetivo para o trabalho com times mistos, e também o perfil docente para atuação nesse tipo de projeto. Criatividade, inovação, mediação didática e mediação tecnológica são requisitos necessários, mas muito raros de se encontrar. Por isso seguimos na perspectiva de capacitar e formar esses docentes.

Raíza Brustolin: Diria que a aprendizagem por projetos, hoje, é uma das abordagens mais completas para o processo de ensino aprendizagem. Com ela, o aluno desenvolve habilidades técnicas e comportamentais, um senso de responsabilidade social, além da própria construção do conhecimento aplicado às suas experiências. Nesse sentido, um dos desafios é promover a autonomia do aluno e um modo de pensar reflexivo e investigativo, que não precisa de respostas prontas (e rápidas) sempre, uma espécie de “desformatação” de um modelo educacional que prioriza respostas certas e a postura passiva e até obediente do aluno.

Inês Waitz: O maior desafio, como o nome diz, é integrar. Ou seja, fazer um trabalho interdisciplinar, de verdade. É sair da caixinha que isola o conhecimento em disciplinas que tentam esgotar conteúdo sem o foco numa aprendizagem que faça sentido ao estudante. É planejar coletivamente, fazer com que os professores selecionem em conjunto conteúdos, métodos e recursos que auxiliem no desenvolvimento do estudante. Que mudem a seta do ensino para a aprendizagem. Isso dói, pois significa abdicar de conteúdos que, dentro de sua especialidade, possa parecer importante.

Marcio Martins: Trabalhar com projetos requer competências importantes por parte dos professores. Engajar pessoas e planejar a atividade considerando os diferentes grupos de alunos que participarão da atividade é um desafio a ser superado. Um outro fator de impacto a ser observado é a necessidade de organização e acompanhamento das diferentes etapas do projeto, com a necessidade de feedback constante para os participantes.

Precisamos ajustar o foco para uma cultura avaliativa formativa onde os alunos desenvolvam as competências ao longo do processo de aprendizagem e, nós, mediadores dessa atividade, consigamos ajustar e corrigir as dificuldades durante o percurso e não ao final das etapas.

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Em relação à matriz curricular tradicional, os projetos integradores e interdisciplinares consolidam parte dos objetivos previstos nas DCNs dos cursos. Os estudantes têm essa percepção na execução dos trabalhos?

Adriene Sttéfane Silva: A minha percepção é de os discentes não se atentam às DCNs, muitos não sabem nem do que se tratam. O sentimento que tenho é que eles entendem os PIs muito mais como uma oportunidade de transpor teoria-prática, e ter contanto com a atuação profissional. Em relação às DCNs, tem sido pauta muito mais das coordenações de curso, que percebem o PI como um curinga no currículo, ou para imprimir o perfil institucional, ou suprir qualquer falha na matriz curricular.

Raíza Brustolin

Raíza Brustolin: Confesso que articular as DCNs aos projetos é algo que nem sempre é fácil, varia de curso para curso, porque corremos o risco de transformar o projeto em uma disciplina apenas com nome de projeto, mas que tem como objetivo contemplar certos conteúdos. Acredito que tem um “caminho do meio” mas esse autoquestionamento constante é sempre necessário, tanto para quem elabora a matriz, quanto para quem conduz os projetos. Nem sempre o aluno percebe os conteúdos contemplados, depende do projeto, e da forma como o docente conduz.

Na Uniamérica temos projetos interdisciplinares, em que há uma tentativa de conciliar com as DCNs e fundamentos, e os projetos integradores que são demandas reais e não tem compromisso de contemplar nenhum conteúdo específico. O aluno, por vezes, quer ver o nome da área ou do componente curricular e muitas vezes ele está diluído em diversas competências/projetos, que é o que ocorre com os cálculos nas engenharias, por exemplo, mas se o docente e o coordenador possuem visão de conjunto, é possível esclarecer o aluno com assertividade.

Inês Waitz: Acredito que, para os estudantes, os projetos integradores materializam o porquê devem aprender determinados conteúdos. Na Unifeob, incentivamos os colegiados a criarem desafios profissionais para o desenvolvimento dos projetos, para que o estudante perceba onde ele vai utilizar aquele aprendizado. O esforço coletivo é para que o estudante perceba o que deve “saber” (conhecimento) e o que ele vai “fazer com esse saber” (habilidade) e, assim, desenvolver as competências pretendidas pelos cursos, conforme DCNs.

Marcio Martins: A inserção de projetos integradores e interdisciplinares nos Projetos Pedagógicos de Curso (PPC) nos possibilita desenvolver as competências propostas para o perfil do egresso de forma a considerar maior flexibilidade, qualidade, acessibilidade metodológica e integração dos diferentes objetivos propostos para a formação dos alunos. Há de se considerar que ao inserirmos a metodologia de projetos em nossos planos de aprendizagem estamos abrindo espaço para um ambiente rico em discussão, que nos possibilita atender as características loco regionais da IES, atender a temas emergentes e construir de forma mais integrada a relação entre os conhecimentos, habilidades e atitudes desenvolvidos nos diferentes componentes curriculares propostos para o curso. Já para o estudante a utilização desta abordagem, facilita a compreensão das competências esperadas  para a construção do perfil profissional, dando sentido ao processo de formação.

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Quais foram as estratégias adotadas para manter os projetos em andamento em tempos de ensino remoto em massa?

Adriene Sttéfane Silva: Na EAD, os PIs sempre foram remotos nos cursos  100% on-line, então a programação seguiu a mesma. Nos cursos híbridos e presenciais, a rotina de desenvolvimento dos PIs estavam muito atrelada aos espaços da IES (laboratórios, FabLab), eram PIs muito “mão na massa”. Tivemos que pensar em uma virada em como desenvolver MVP, produtos e projetos, sem esses ambientes, e dividimos essa demanda com os próprios discentes. Algumas propostas de PIs foram:

  • Desafio das Engenharias: criar e viabilizar práticas, via suportes tecnológicos, para escolas públicas que ofertam Ensino Médio.
  • Desafio da Pedagogia: como trabalhar o concreto no Ensino Infantil, em tempos de pandemia.

Por meio desses desafios, os próprios alunos contribuem para a descoberta de novas práticas que podem subsidiar o ensino-aprendizagem, inclusive no ensino superior.

Raíza Brustolin: Eu diria que o suporte técnico para as ferramentas, principalmente no início, e posteriormente o apoio “afetivo/emocional” foram os pontos fortes; a metodologia já estava estabelecida, o que reforçou e manteve todos juntos foi realmente o acolhimento e acompanhamento humanizado dos alunos por parte dos docentes, equipe de relacionamento e da própria reitoria em contato direto com os alunos por meio do conselho de líderes de turma.

Inês Waitz

Inês Waitz: Como o planejamento é coletivo, ao entrar para o ambiente remoto, cada colegiado de curso já tinha a trilha que deveria percorrer com o grupo. Como sabiam onde teriam que chegar, o foco foi a adequação para o formato virtual.

Marcio Martins: Nesse “novo normal” buscamos viabilizar estratégias para continuidade dos projetos integradores e interdisciplinares, ao qual chamamos de PIN (Projeto Integrador) utilizando nossa estrutura de LMS e demais ferramentas tecnológicas Institucionais. Vem sendo um momento de muita novidade e adaptação e buscamos consolidar as estratégias de forma a considerar a relação de planejamento, execução, monitoramento/controle e finalização do projeto de forma remota, porém respeitando as bases conceituais definidas para nossa proposta.

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Houve diferença em relação as turmas que atuaram em projetos integrados e as turmas que seguiram com as aulas remotas tradicionais?

Adriene Sttéfane Silva: Em nossa IES, fizemos a virada para o RLR  em todas as turmas presenciais, então todos tem a experiência + aulas ‘tradicionais’ em RLR + PIs em RLR.

Raíza Brustolin: Nós não temos turmas com aulas tradicionais, as etapas do projeto bem definidas e um cronograma organizado facilitaram o processo ativo do aluno na construção do projeto, mesmo com encontros virtuais.

Inês Waitz: Aqui, na Unifeob, todos os cursos possuem projeto integrado.

Marcio Martins

Marcio Martins: Mesmo antes da pandemia instalada pela covid-19, nossos cursos já atuavam com Projetos Integradores (PIN) em sua matriz curricular. Os cursos a distância não foram impactados e seguimos com a estrutura de projetos sendo desenvolvida conforme proposta didática dos curso. Já nos cursos presenciais e semipresenciais, onde atuamos com um modelo híbrido de projeto, precisamos ajustar para que todo o processo/etapas acontecesse de forma virtualizada, o que de fato demandou de alunos e professores uma adequação para que os objetivos propostos fossem atingidos. Neste momento, foi necessário redesenhar os projetos, revisitar as etapas e considerar novos caminhos para se atingir as metas definidas.

Quais as orientações que vocês dariam para as IES que ainda não atuam com projetos integrados e querem implantar em 2020/2?

Adriene Sttéfane Silva: Importante ressaltar que toda e qualquer alteração na metodologia de oferta e de componentes curriculares, devem estar previstas no PDI e nos PPCs dos cursos.

Raíza Brustolin: Eu diria que a relação com a comunidade e o relacionamento com empresas, instituições e órgãos públicos é fundamental, ter uma pessoa ou setor responsável por esse processo aproximando docentes e coordenadores dos parceiros facilita muito a realização de projetos que impactam a sociedade e aproximam o aluno da realidade profissional. Além da própria formação do docente com estratégias de acompanhamento e feedback do aluno.

Inês Waitz: Projetos integradores são excelentes estratégias para engajar o estudante no processo de aprendizagem, já que eles proporcionam a articulação dos saberes trabalhados em todas as disciplinas e passa a fazer mais sentido para os estudantes. Porém, necessita de planejamento e que esse planejamento seja coletivo. A dica é engajar os professores em um trabalho coletivo e que esteja à serviço da aprendizagem e desenvolvimento do estudante.

Marcio Martins: Vejo como fundamental a inserção de uma proposta por projetos integradores e interdisciplinares para a construção de um curso mais moderno e alinhado com as competências esperadas para um profissional do futuro. A IES deve estar aberta para construir um espaço de discussão junto aos principais atores do processo de aprendizagem, levando em consideração a sua realidade loco regional, características dos seus alunos e a integração entre os componentes curriculares.

Destaco ainda a necessidade de ferramentas específicas para o planejamento, controle e avaliação dos projetos, visando mitigar os possíveis fatores estressores deste processo. Essas ferramentas tecnológicas auxiliam o professor e o aluno a construírem o projeto de forma organizada, colaborativa e automatizada. Os projetos desenvolvidos por alunos e professores podem e devem surgir a partir de óbices vivenciados pela IES e que muitos deles acabam se tornando soluções criativas para a instituição. Este ponto em especial fortalece ainda mais o vínculo e o pertencimento dos alunos junto ao seu curso e a sua instituição.

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Fernanda Furuno
Fernanda Furuno é cofundadora do Guia EAD Brasil, membro do conselho de inovação da Abed, do conselho da diretoria institucional da Anebhi e do conselho editorial do portal Desafios da Educação. Você pode falar com ela em @fernandafuruno.

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