Empregabilidade

Uma conversa com Rui Fava sobre educação, trabalho e tecnologia

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Sócio fundador da Atmã Educar, empresa de soluções inovadoras para o setor; ex-reitor da Unic, da Unopar e vice-presidente acadêmico da Kroton, Rui Fava conversa sobre os temas que permeiam seu novo livro “Trabalho, Educação e Inteligência Artificial: a era do indivíduo versátil” [Foto: República - Agência de Conteúdo)

Rui Fava, sócio fundador da Atmã Educar, ex-reitor da Unic, da Unopar e vice-presidente acadêmico da Kroton. Crédito: República – Agência de Conteúdo.

Na educação do futuro, não basta ter conhecimento: é preciso saber aplicar. O lembrete é dado por Rui Fava, que aborda o assunto em seu novo livro Trabalho, Educação e Inteligência Artificial: a era do indivíduo versátil, lançado em julho pela Editora Penso.

A obra é dividida em três partes. Na primeira, o autor resgata a história do trabalho até chegar à automação e à inteligência artificial que provoca o fim do vínculo empregatício e dá início à era da “trabalhabilidade”. Na segunda etapa, Rui Fava escreve sobre os novos paradigmas da tecnologia e a exigência da versatilidade aos cidadãos. Por fim, o livro mergulha na educação do futuro – destacando a importância da aprendizagem ativa e do currículo por competências, entre outras questões.

O Desafios da Educação conversou sobre todos esses assuntos com Rui Fava. A seguir, leia os principais trechos da entrevista.

Você afirma que as novas tecnologias diminuíram a importância da “empregabilidade” e deram início à “trabalhabilidade”. Como é isso?
Empregabilidade é um conceito que surgiu nos anos 1990. Significa entrar na empresa, manter-se e ascender no mercado de trabalho. Tem a ver com vínculo e dependência da empresa com seu colaborador, o valor de um profissional no mercado de trabalho – ou seja, quanto ele vale no sentido de transações, mercado e aquisição de um emprego. Quanto maior a empregabilidade de uma pessoa, mais atrativa ela será para o mercado. Já a trabalhabilidade é um conceito mais contemporâneo. Refere-se à capacidade de gerar trabalho, além do emprego. É como a pessoa se vê produzindo economicamente, relaciona-se ao know-how de gerar trabalho e a versatilidade que um indivíduo possui de se ver produzindo na economia criativa, por meio de atividades com múltiplas formas de trabalho. Empregabilidade demanda adaptabilidade, enquanto trabalhabilidade postula adotabilidade.

É uma linha tênue que separa a empregabilidade da trabalhabilidade.
As preocupações das escolas sempre foram melhorar a empregabilidade de seus egressos. Isso foi suficiente enquanto o emprego era abundante. Com o advento das tecnologias, que provocaram a substituição do trabalho físico, repetitivo e preditivo, as escolas deverão se preocupar com a trabalhabilidade, formar empreendedores de suas próprias carreiras, na qual a fidelidade a uma companhia é fraca, efêmera, fugaz.

O que os currículos percisarão ter?
Como defendo em meu mais recente livro, diria que os currículos escolares, em todos os níveis, necessitam desenvolver a “Acuidade Mental”, indivíduos que pensem (inteligência cognitiva); saibam manear suas emoções, tenham empatia (inteligência emocional); atitude de agir, realizar, transformar, adotar, se adaptar (inteligência volitiva); habilidade de discernir, buscar a essência, separar o que é importante e útil daquilo que é descartável, escolher, decidir em meio ao caos, obscuridade, incertezas (inteligência decernere). Se fizermos uma hierarquia das quatro inteligências, as mais importantes são a volitiva e a decernere. São essas que deverão mobilizar as outras duas inteligências, pois tem a ver com a proatividade, o fazer, o aplicar, o empreendedorismo e não o contrário. Os educadores tradicionais valorizam demais o saber pensar, mas hoje isso não significa nada se não vier acoplado ao aplicar.

Girar a “chave da trabalhabilidade” nos currículos parece ser um grande desafio da educação.
Esse é um grande desafio porque a educação sempre foi escrava do trabalho, ou seja, se o trabalho muda, a educação inevitavelmente tem que se adequar. Atualmente, com o advento das tecnologias digitais e inteligência artificial, a força do trabalho tornou-se móvel, fisicamente desagregada, com isso a conectividade passa a ser virtual. Nesse imenso mundo de possibilidades, a geração digital apreendeu que pode prosperar sozinha, preferem investir em si próprios a se vincular a uma organização, estudar de forma autônoma, em vez de ingressar em escolas com modelos acadêmicos ultrapassados. Sem dúvida, haverá́ uma grande turbulência à frente no sentido ao desconhecido. Estamos adentrando em um mundo em que devemos aprender a subsistir com a colaboração, a confiança e a ética, a coabitar com estranhos e desconhecidos condiscípulos, transmutando papéis e responsabilidades com muita resiliência. O problema é que, por comodismo ou por estar contente com o status quo do presente sem pensar no futuro, aparentemente as escolas não estão se dando conta dessas metamorfoses.

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Não é uma lógica promissora, se considerarmos que 60% das profissões podem desaparecer no futuro, conforme indica algumas pesquisas.
Não é – apesar da história mostrar que isso faz parte. Depois da Revolução Industrial, muitas profissões despareceram. Veio o computador e outras tantas sumiram. Mas ao mesmo tempo outras ocupações surgiram. Hodiernamente, a IA é o acelerador, catalisador, dinamizador da humanidade. Tudo o que concebemos, está sempre em processo de se tornar diferente. A metamorfose é inelutável. É preciso adaptar, domesticar as invenções impelidas pela IA, por meio de aceitação, adotabilidade precavida. Estamos nos afastando do mundo dos substantivos fixos, em direção a um mundo de verbos fluidos. É veraz anunciar que os objetos sólidos, como o automóvel, livro, objeto de aprendizagem sejam transfigurados em verbos intangíveis, significando que produtos se tornarão serviços e/ou processos. Assim como o automóvel, incorporado com altas doses de tecnologias, se tornará um serviço de transporte, a educação também se transformará em um serviço contínuo, evoluído, tendo que se adaptar velozmente as demandas do mercado, ao perfil do estudante. O processo de ensino e aprendizagem deverá ser embalado com flexibilização, personalização, atualização, adaptação, conexão rápida, se possível instantânea. Currículo algum é intocável, metodologia nenhuma é estática, avaliação qualquer será inerte, tudo está se tornando ininterruptamente mutável. Quando ideamos um futuro disruptivo, deveremos ter em conta que tudo se tornará momentâneo, efêmero e que, acoplado a isso, advirá um constante desconforto.

Como os educadores podem ser menos conteudistas e mais adeptos do ensino personalizado?
A IA está desrobotizando os humanos. Está arrebatando das pessoas o trabalho de robô, facultando para os indivíduos tão somente o trabalho humano. Isso exprime que toda ocupação física, repetitiva, preditiva não é mais do homem e sim da máquina. É o término da era do produto e o início da fase do serviço. A IA também está desrobotizando a educação. Daí a derrota do ensino coletivo, do ensinar a muitos como se fosse um só, da transmissão de conteúdos, da repetição, da palestra. O homem necessita de uma educação para humanos, não para robôs, ou seja, aprender a pensar, sentir, agir, discernir. Isso expressa o epílogo do currículo por caixinhas, das disciplinas estáticas, dos cursos engessados. Agora a educação necessita de uma educação mais personalizada, com o papel de conceber, desenvolver, atualizar as competências conceituais, procedimentais e atitudinais. Entretanto, por vários motivos, isso somente será possível por meio da criação e desenvolvimento de um Sistema de Ensino para a Educação Superior. É muito mais que apostilamento: trata-se da oferta de um conjunto de competências e produtos a serem desenvolvidos por meio de um roteiro subsidiado pela gestão de ferramentas tecnológicas, bem como um vasto repertório de objetos de aprendizagem que não ferem a liberdade de cátedra do professor, mas amplia seus recursos para aplicação dos conteúdos, avultando a relação ensino-aprendizagem.

A resistência dos professores é uma questão recorrente nesses debates.
Essa resistência não está apenas nos professores, mas também nas escolas, nos grandes grupos educacionais. Muitos educadores resistem por estar preso ao presente, ao curto prazo, não querem predicar como será o futuro da educação, com receio, incerteza, medo da rapidez das mutações causadas na sociedade, no mercado, no mundo, por meio da tecnologia digital. Essa cegueira causa aflição, almejando um status quo permanente, sem passado, nem futuro, existindo somente o presente. A resistência a transmutação é cabal, nas matrizes engessadas, na fingida, enganosa, pseuda, transmutação dos sistemas acadêmicos tradicionais em currículos por competências, nas estruturas físicas de sala de aula, nos laboratórios analógicos, nas metodologias de transmissão, nas avaliações de aprendizagem que continuam de verificação, comprovação, ranqueamento. O porvir que está sendo apontado, é produto de um processo constante de evolução tecnológica, isso significa que não podemos ver coisas novas a partir de um quadro velho, para não distorcer o recém-chegado. Essa ablepsia não é anormal, em todas as épocas, houveram bloqueios em perceber, compreender, aceitar a transmutação, muitas vezes a trajetória das metamorfoses eram difíceis de acreditar, pareciam impossíveis, ridículas, portanto, deveriam ser descartadas.

Também existe um desafio de estimular e convencer esses alunos de um novo modelo.
Embora tenhamos vários benchmarking e a tecnologia tenha transformado boa parte dos ambientes que frequentamos, das atividades que realizamos, os currículos acadêmicos brasileiros ainda funcionam em um modelo da fase industrial, com disciplinas conteudistas, turmas numerosas, obrigando os estudantes a passiva e silenciosamente assistir palestras monótonas de um professor em cima de um tablado, tendo em suas costas um quadro negro, ensinando respostas consumadas, receitas ultrapassadas para anomalias que nem são mais problemas. Por outro lado, o mundo que os estudantes vivenciam fora dos portões da escola, as respostas não estão prontas, o certo e errado é relativo, estão diuturnamente convivendo com uma tecnologia que a escola ainda não sabe como utilizá-la em benefício do processo de ensino e aprendizagem. A tecnologia não deve ser o fim, todavia, certamente deverá ser o meio para tornar o processo de educar mais eficiente, efetivo, eficaz, sem perder o foco no que realmente importa: a aprendizagem.

A evolução da IA significa que o professor será dispensável?
Uma conjuntura factual: nenhuma aplicação de IA é suficiente para substituir o professor. O docente nunca será dispensável. Contudo, assim como a inteligência artificial está comutando toda ocupação preditiva no mundo do trabalho, na educação a simples transmissão, repetição de conceitos produzidos por terceiros, também será permutada por máquinas inteligentes. O transtorno é que isso significa mais de 75% dos docentes que atuam em nossas escolas de ensino superior. Evidentemente que se altera a incumbência, todavia, o professor prosseguirá sendo o ator crucial, medular, indispensável. O docente exercerá duas funções primordiais. A primeira de professor conteudista que deverá planejar, conceber, desenvolver, reunir, selecionar, organizar dados e informações. Esse material formará a base para a produção do material didático para um sistema de ensino. A segunda, o professor aplicador dos conteúdos, será o que poderíamos denominar Jus-in-Time Teaching (JiTT), ou seja, o docente irá intervir no momento em que, por meio de tecnologias como Adaptive Learning, verificar qual a verdadeira deficiência, dificuldade, lacuna de aprendizagem que o estudante estiver demonstrando. Os professores utilizam configurações de aprendizagem personalizada e assumem mais um papel de coaching, auxiliando, estimulando, incitando os estudantes de volta aos trilhos quando ficam presos, distraídos, com dificuldades.

Essa realidade ocorre em outros países, além do Brasil?
Quando a educação não acompanha o progresso tecnológico, não qualifica seus aprendizes para as ocupações emergentes, cresce a desigualdade econômica, pois poucas instituições conseguem preparar estudantes para as futuras ocupações. Uma pergunta interessante: quão satisfeitos estão os empregadores, estudantes e educadores com o atual estágio de educação superior? De acordo com pesquisas da Education to Employment Getting Europe’s youth into work e da US Chamber of commerce of foundation, existe uma enorme distância entre a percepção dos empregadores, educadores e estudantes. Nos Estados Unidos 96% dos educadores entendem que seus alunos estão preparados para o mercado de trabalho, enquanto apenas 11% dos empregadores entendem o mesmo. Na União Europeia o gap é um pouco menor com 74% dos educadores afirmando que seus egressos estão preparados, porém somente 35% dos empregadores concordam. Infelizmente não temos pesquisas em nosso país, todavia certamente os percentuais não são diferentes. Talvez sejam piores.

Leonardo Pujol
Leonardo Pujol é editor do portal Desafios da Educação e sócio-diretor da República, agência especializada em jornalismo, marketing de conteúdo e brand publishing. Seu e-mail é: pujol@republicaconteudo.com.br

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