Empregabilidade

As previsões de Yuval Harari sobre educação e trabalho em 2050

1

Dez anos atrás, enquanto eu rodava pelos sertões do Rio Grande do Norte e da Paraíba a trabalho, acostumei-me a ver uma quantidade expressiva de burros e jegues abandonados à beira da estrada. A razão? Os asininos haviam perdido espaço para o avanço tecnológico.

Era meados de 2010 e os jumentos, que historicamente serviram como principal meio de transporte de carga e de gente no interior nordestino, eram substituídos de forma progressiva por veículos motorizados, sobretudo motocicletas. “Expulsos” do mercado de trabalho, os animais abandonados por seus donos vagavam soltos em estradas, agravando o problema dos acidentes na região.

Não pude deixar de pensar nesses animais quando li sobre o possível surgimento do que o historiador Yuval Harari chamou de uma nova classe de “inúteis”. São trabalhadores não qualificados que ficarão desempregados se não estiverem habilitados para trabalhar lado a lado com a inteligência artificial (IA), o aprendizado de máquina e a robótica.

Leia mais: As profissões mais (e menos) ameaçadas por robôs no Brasil

Em ciclos de automação do passado, as pessoas não qualificadas podiam trocar de emprego com certa facilidade – Harari afirma em seu último livro, 21 lições para o Século 21.

Por exemplo: em 1920, um trabalhador agrícola dispensado devido à mecanização da agricultura era capaz de encontrar um novo emprego numa fábrica de tratores. Nos anos 1980, um operário de fábrica demitido conseguia uma vaga de caixa no supermercado. São mudanças de ocupação que exigiam um retreinamento limitado.

Yuval Harari, em apresentação no TED Talks: ameaça da perda de emprego não resulta apenas da ascensão da TI, mas de sua confluência com a biotecnologia. Crédito: divulgação.

“Em 2050, porém, um caixa ou um operário da indústria têxtil que perder seu emprego para um robô dificilmente estará apto a começar a trabalhar como oncologista, como operador de drone ou como parte de uma equipe humanos-IA num banco. Não terão as habilidades necessárias”, escreve Harari.

Assim, diz o historiador, muita gente poderia compartilhar não o destino dos condutores de carroça do século 19, que se tornaram taxistas, mas sim o dos cavalos, dispensados do mercado de trabalho – como os asininos nordestinos.

Harari, o profeta

Desde 2014, quando publicou o livro “Sapiens” em inglês – Yuval Harari também é autor de outro best seller, “Homo Deus” –, o israelense de 43 anos virou uma espécie de oráculo mundial.

Ele não gosta desse rótulo – reconhece que ninguém pode prever as mudanças específicas que vamos testemunhar –, mas tanto CEOs do Vale do Silício quanto líderes políticos como Barack Obama e Angela Merkel param tudo o que estão fazendo para escutar suas interpretações reveladoras sobre o futuro desconhecido da humanidade. E isso inclui falar de educação e trabalho.

Leia mais: Professor deve ser valorizado e melhor remunerado, diz Obama no Brasil

Uma certeza pessoal: Yuval Harari defende que o aprendizado de máquina (machine learning, em inglês) será crucial para o futuro do trabalho. E quando ele fala sobre “revolução da IA”, não está se referindo a computadores mais rápidos e inteligentes, mas melhores “na análise do comportamento humano, na previsão de decisões humanas, e na substituição de motoristas, profissionais de finanças e advogados”.

“Por isso a ameaça da perda de emprego não resulta apenas da ascensão da tecnologia da informação, mas de sua confluência com a biotecnologia”, afirma.

Leia maisMachine learning, IA, big data: novas tecnologias dão impulso à aprendizagem

Conectividade e atualização

Além da crescente capacidade de hackear comportamentos humanos, a IA tem duas habilidades não humanas de relevância: conectividade e capacidade de atualização.

Para entender o que isso quer dizer, considere que muitos motoristas não estão familiarizados com todas as regras de trânsito e frequentemente as transgridem. Além disso, cada veículo é uma entidade autônoma. Quando dois veículos se aproximam do mesmo cruzamento, sempre existe o risco de os motoristas comunicarem suas intenções de forma errada e colidir.

Carros autônomos, em contrapartida, podem ser conectados entre si. Quando dois veículos se aproximam, eles não são entidades autônomas – fazem parte de um sistema interligado. A possibilidade de colisão é bem menor.

Além disso, se o órgão regulador de trânsito criar novas leis, sem problema: os veículos autodirigidos podem ser atualizados com facilidade e exatamente no mesmo momento. E os reguladores poderão ter certeza de que essas regras serão seguidas à risca, salvo um bug no sistema.

Considerando que 1,25 milhão de pessoas morrem todos os anos em acidentes de trânsito, e que 90% desses acidentes são provocados por erro humano (como dormir ao volante ou por distração no celular), a automação é um alento. Isso porque a expectativa é que os computadores reduzam 90% das mortes – isto é, poupe a vida de 1 milhão de pessoas.

“Por isso seria loucura bloquear a automação em campos como o do transporte e o da saúde só para proteger empregos humanos. Afinal, o que deveríamos proteger são os humanos – não os empregos”, diz Yuval Harari.

Leia mais: Na educação, análise de dados pode identificar problemas e orientar ações

Pessoas (e robôs), uni-vos

Em vez de competirem com a IA, os humanos “poderiam se concentrar nos serviços à IA e sua alavancagem”, escreve Yuval Harari. “Impedir por completo a perda de empregos é uma estratégia pouco atraente e provavelmente indefensável, porque significa abrir mão do imenso potencial positivo da IA e da robótica.”

Yuval Harari, em Brasília: é preciso qualificar alunos com habilidades socioemocionais. Crédito: Foto: Marcos Brandão/Senado Federal.

A substituição de pilotos humanos por drones, por exemplo, até pode ter eliminado alguns empregos, mas também criou muitas oportunidades novas em áreas como manutenção, controle remoto, análise de dados e segurança cibernética.

Segundo Harari, as Forças Armadas americanas precisam de 30 pessoas para operar cada drone sobrevoado a Síria, enquanto as informações coletadas por ele eram analisadas por outras 80 pessoas. Mas em 2015, ironicamente, o exército americano não dispunha de uma quantidade suficiente de humanos para preencher todas as posições.

Leia mais: Quando a tecnologia está a serviço da educação

Conheça a si mesmo. E aprenda a reaprender

É diante desse manancial de recursos, mudanças e possibilidades que Harari reflete sobre o futuro do trabalho em 21 lições para o século 21.

Como os governos devem reagir diante da automação: acelerar o processo ou retardar o ritmo? Qual é a ética por trás dos dados pessoais captados pelos computadores de empresas e governos? E o que deve incluir a educação básica: ler e escrever, somente, ou também programas computador e tocar violino? Ensino fundamental e médio ou também pós-graduação?

Infelizmente, há bem mais perguntas do que respostas. A única certeza é que o futuro nos reserva mudanças sem precedentes, radicais e (contraditoriamente) incertas.

Um bebê nascido hoje completará 30 anos em 2050. E, se tudo der certo, ele ainda estará vivo para testemunhar a entrada para o século 22. De que tipo de habilidades ele ou ela precisará para conseguir um emprego, compreender o que está acontecendo a sua volta e percorrer o laboratório da vida?

Em vez de as escolas se concentrarem apenas em abarrotar os alunos com informação e habilidades predeterminadas, como identificar substâncias químicas num tubo de ensaio, conversar em mandarim ou programar computadores, é importante qualificar os alunos com competências e habilidades socioemocionais – as chamadas soft skills.

“Muitos especialistas em pedagogia alegam que as escolas deveriam passar a ensinar os ‘quatro Cs’ – pensamento crítico, comunicação, colaboração e criatividade”, compartilha Harari na página 323 de 21 lições para o século 21.

“Num sentido mais amplo, as escolas deveriam minimizar as habilidades técnicas e enfatizar habilidades para propósitos genéricos da vida”.

Leia mais: Educação baseada em competências vai além do conhecimento técnico

Para poder acompanhar o mundo em 2050, ou no século 22, Yuval Harari diz que as pessoas vão precisar mais do que capacidade de inventar novas ideias e produtos – precisarão reinventar a si mesmas várias e várias vezes.

É verdade que esse e outros conselhos estão em um livro escrito no primeiro semestre de 2018. Mas as recomendações seguem atuais.

Em novembro passado, Harari esteve pela primeira vez no Brasil. Ele foi recebido por deputados e senadores em Brasília, lotou teatros no Rio de Janeiro e em São Paulo e até participou de programas de TV. Nessas ocasiões, criticou o monopólio de empresas digitais e alertou para regulamentação do uso de dados pessoais. Mas nenhum desses temas ganhou mais atenção dele quanto o conceito de lifelong learning.

“A principal habilidade”, disse ele durante um evento na capital paulista, “não é mais aprender qualquer fato ou equação física, mas como se manter aprendendo e mudando ao longo da vida”.

O tempo de transição para esse novo mindset está se esgotando. E não seria exagero afirmar que quem ficar para trás, mal comparando, corre o sério risco de compartilhar o destino dos animais que eu encontrava vagando pelas estradas do Nordeste.

Leia mais: Conheça os novos perfis profissionais gerados pela transformação digital

Leonardo Pujol
Leonardo Pujol é editor do portal Desafios da Educação e sócio-diretor da República, agência especializada em jornalismo, marketing de conteúdo e brand publishing. Seu e-mail é: pujol@republicaconteudo.com.br

You may also like

1 Comment

  1. Olá colega
    Excelente análises sobre o casos dos asininos e sua relação com o debate proposto por Yuval Harari.
    Abraços.

Leave a reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.